quinta-feira, 25 de março de 2021

Quando a Luz se Curvou

 


Observação do eclipse solar de 1919 no Brasil e na África forneceu primeira prova experimental da validade da teoria da relatividade de Albert Einstein

Nenhum eclipse solar teve tanta repercussão na história da ciência como o de 29 de maio de 1919, fotografado e analisado ao mesmo tempo por duas equipes de astrônomos britânicos. Uma delas foi enviada à cidade de Sobral, no interior do Ceará; a outra, à ilha do Príncipe, então um território português na costa da África Ocidental. O objetivo era verificar se a trajetória da luz das estrelas seria desviada ao passar por uma região com forte campo gravitacional, no caso o entorno do Sol, e de quanto seria essa mudança caso o fenômeno fosse medido. Salvo alguma surpresa, as expedições trabalhavam com três resultados possíveis: a luz não mudaria de trajetória por causa da gravidade; sua deflexão seria conforme cálculos feitos por outros físicos a partir da teoria da gravitação universal do britânico Isaac Newton (1643-1727); seu desvio seria de acordo com as previsões do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) na teoria geral da relatividade, um valor de aproximadamente o dobro obtido pelos seguidores de Newton. Seis meses mais tarde, fotos e cálculos divulgados pelos britânicos sobre o fenômeno deram razão a Einstein.

O empreendimento é considerado a primeira comprovação experimental da teoria da relatividade geral, publicada quatro anos antes por Einstein, segundo a qual matéria e energia distorceriam a malha do espaço-tempo e, consequentemente, a trajetória da luz que por ela viaja. Ao dar suporte às ideias de espaço-tempo curvo de Einstein, os resultados das observações do eclipse mudaram a concepção que se tinha sobre o Universo. Essa comprovação também ajudou a transformar o físico alemão em um dos mais respeitados e conhecidos cientistas do século XX.

Passados 100 anos do eclipse, é consenso na comunidade científica que a relatividade geral prevê de forma mais acurada a mudança de trajetória (deflexão) da luz das estrelas do que os cálculos feitos a partir da teoria da gravidade newtoniana. No entanto, durante décadas, astrofísicos, físicos e historiadores da ciência debateram se os dados obtidos nas observações de 1919 eram suficientemente robustos para endossar as ideias de Einstein, como, de fato, ocorreu. Alguns críticos argumentaram que as medições não teriam sido precisas o bastante para decidir qual das duas teorias estava certa; outros, que o astrônomo britânico Arthur Stanley Eddington (1882–1944), diretor do Observatório da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e chefe da expedição enviada para observar o eclipse na ilha do Príncipe, teria deliberadamente descartado dados favoráveis à teoria de Newton produzidos em Sobral. “Eddington era um entusiasta das ideias de Einstein e estava ansioso para fazer um gesto em direção à reconciliação entre o Reino Unido e a Alemanha após o fim da Primeira Guerra Mundial [1914-1918] por meio da verificação experimental de sua teoria”, destaca o físico Luiz Nunes de Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). “Mas não há evidências de que houve manipulação dos dados.”

O astrofísico e historiador da ciência irlandês Daniel Kennefick, da Universidade de Arkansas, nos Estados Unidos, também refuta as alegações de que Eddington teria forçado a mão em favor de Einstein. “Além de não ter estado em Sobral e, portanto, não ter participado da produção dos registros, Eddington não se envolveu na análise dos dados dessa expedição. Isso foi feito por Frank Dyson [1868-1939] e seus subordinados no Observatório de Greenwich, em Londres”, argumenta Kennefick, que está lançando um livro sobre os 100 anos do eclipse (ver entrevista).

Uma região do céu com estrelas, que os astrônomos chamam de campo estelar, muda de posição continuamente. Mas a posição relativa entre suas estrelas é sempre igual em uma escala de tempo pequena, em geral de meses. “Se tirarmos uma foto hoje e outra daqui a três meses, as estrelas de um mesmo campo se superpõem perfeitamente”, explica o astrônomo Augusto Damineli, da USP. “Mas, no caso de um eclipse solar, a luz das estrelas aparece ligeiramente deslocada em relação à foto desse mesmo campo tirada à noite sem a presença do Sol. Quanto mais perto do Sol está uma estrela, maior é o entortamento da trajetória de sua luz durante o eclipse.” Era esse efeito, então previsto, mas ainda não observado experimentalmente, que as expedições britânicas conseguiram confirmar.

No livro Opticks, cuja primeira edição é de 1704, Newton afirma que a trajetória da luz deveria ser entortada pela gravidade, mas não calculou de quanto seria esse desvio. Para ele, a gravidade seria uma força que atuaria entre a matéria de forma proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância. Nessa época, a natureza da luz era desconhecida. Duas hipóteses coexistiam: a de que ela seria constituída de corpúsculos (partículas) ou a de que seria um tipo de onda. Partindo da premissa de que a luz era corpuscular, mesmo sem conhecer a sua massa, o britânico John Michell (1724-1793) e o francês Pierre-Simon Laplace (1749-1827) calcularam, de forma independente, os efeitos da gravidade sobre a luz no final do século XVIII. Ao longo do século XIX ficou estabelecido que a luz era uma onda de natureza eletromagnética. “Depois de a luz ter sido considerada um tipo de onda, passou a ser completamente incerto se ela sofreria qualquer efeito da gravidade, pois, nesse caso, ela não seria matéria”, comenta Daniel Vanzella, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP. “Essa questão ficou em aberto por mais de 100 anos.”

Einstein começou a se tornar conhecido dentro da comunidade científica ao introduzir em 1905 uma visão nova em relação à noção de espaço e tempo. “Com a publicação da chamada teoria da relatividade especial, espaço e tempo deixaram de ser entendidos como absolutos”, explica o astrônomo Reinaldo Ramos de Carvalho, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos (SP). Segundo o físico alemão, o espaço poderia se deformar, encolher e colapsar, formando buracos negros, enquanto o tempo poderia se dilatar. No entanto, essa versão incompleta de sua teoria ainda dava o mesmo resultado que a gravitação newtoniana para a questão da deflexão da luz: 0,87 segundo de arco. Somente depois de publicar a teoria da relatividade geral em 1915, Einstein deu um passo além.

Ele introduziu a ideia de que a gravidade não era uma força trocada entre a matéria, como dizia Newton, mas uma espécie de efeito colateral de uma propriedade da energia: a de deformar o espaço-tempo e tudo o que se propaga sobre ele, inclusive ondas, como a luz. “Para Newton, o espaço era plano. Para Einstein, com a relatividade geral, ele é curvo perto de corpos com grande energia ou massa”, comenta o físico George Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). Com o espaço-tempo curvo, o valor da deflexão da luz calculada por Einstein praticamente dobrou, atingindo 1,75 segundo de arco.

Sobral no mapa do mundo

Depois da publicação da relatividade geral, astrônomos de diferentes países engajaram-se para tentar detectar esse fenômeno por meio da observação de eclipses solares totais. Nesses casos, seria possível fotografar estrelas próximas à coroa solar e, assim, verificar se sua luz mudava de posição em razão da proximidade do grande astro. No entanto, seja por causa do mau tempo ou das dificuldades impostas pela Primeira Guerra Mundial, ninguém conseguiu obter resultados que comprovassem as ideias de Einstein até o eclipse de 1919 (ver linha do tempo).

Em meados de 1918, pesquisadores brasileiros do Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, cientes da ocorrência de um eclipse no ano seguinte, verificaram que a pacata cidade de Sobral, a 200 quilômetros de Fortaleza, reunia condições geográficas bastante favoráveis para a observação do fenômeno. Com isso em mente, o astrônomo Henrique Charles Morize (1860-1930), diretor da instituição, elaborou um relatório detalhado sobre a região e o enviou a várias instituições científicas do mundo, incluindo a Real Sociedade Astronômica, de Londres.

Frank Dyson, presidente da Real Sociedade Astronômica, havia entrado em contato com as teorias de Einstein por meio de Arthur Eddington, que era secretário-geral da instituição. Eddington vinha se destacando dentro da comunidade astronômica europeia, segundo o historiador da ciência Matthew Stanley, do Departamento de História da Ciência da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Seu trabalho em cosmologia estatística havia ajudado a estabelecer uma reputação de cientista criativo e talentoso, e seu trabalho com estruturas estelares ainda hoje é considerado fundamental para o desenvolvimento da astrofísica teórica”, escreveu Stanley em artigo publicado na revista Isis em 2003. “Tanto Eddington como Dyson sabiam que o eclipse de maio de 1919 seria especial”, comenta Oliveira. “O Sol passaria diante de um grande aglomerado de estrelas na constelação de Touro, de modo que haveria muitas luzes brilhantes para se observar.” O eclipse permitiria fotografar por alguns minutos as estrelas no fundo do céu próximas da borda do Sol, a uma distância de 150 anos-luz da Terra — cada ano-luz equivale a 9,5 trilhões de quilômetros.

Acervo do Observatório Nacional  Telescópio de 13 polegadas usado pelos britânicos no Ceará para registrar o eclipse - Acervo do Observatório Nacional De Olho no Céu

 

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